segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Carta a Cibele Forjaz

Por Paulo V. Bio Toledo

Na semana que saiu o primeiro número do Núcleo/Jornal maCAC-ando, uma crítica marcou território. A primeira vez que a ouvi foram algumas horas depois de distribuímos os jornais. Você elogiou o novo formato e disse [mais ou menos assim]: “só acho que vocês tratam o CAC como uma entidade, quando, na verdade, o CAC somos nós todos, inclusive vocês.”. Ao longo da semana ouviria novamente tal crítica três ou quatro vezes. Uma delas, mais marcante, quando no debate sobre Teatro Popular, promovido pelo 1°ano na Semana de Arte e Cultura, as organizadoras fizeram coro ao dito dizendo que o tratamento dado ao CAC no jornal como algo maior, externo a nós, parece uma fuga das reais questões, como o medo de apontar, literalmente, os alvos das insatisfações. E que, no fundo, parece que gostamos de criticar, mas queremos mesmo é que as coisas fiquem como estão.
Hoje eu lia uma análise sobre a crise financeira mundial. Um economista francês, Laurent Cordonnier, contrapunha as especulações financeiras mundiais com a vida real dos homens: onde “os mercados se ajustam e os atores, não” [Ajustes dolorosos entre oferta e procura. In: Le Monde Diplomatique Brasil, set. 2008], ou seja, o nível da subjetividade do capital financeiro e da auto-regulamentação do mercado é tanto que o homem torna-se o equilibrista nas alturas, rezando para que novos ventos incontroláveis e incompreensíveis não o derrubem novamente (leia-se, não o matem de fome). Por esse cenário, comecei a pensar qual seria nossa efetiva atuação no mundo (partindo do pressuposto, é claro, de que tenhamos algum desejo na transformação das coisas como estão). Precisamente, qual seria o real poder de atuação na micro-esfera social em que habitamos? Será mesmo que estamos contribuindo com alguma coisa ao reciclar o lixo, cuidar de um cachorro abandonado, praticar o “consumo consciente”? Será mesmo que nossa atuação no âmbito dos reflexos da economia global surte um mínimo de efeito? Cada vez mais, as pessoas levantam as bandeiras dessa “micro-revolução”, e, paralelamente, é cada vez maior o número desses pequenos focos de atuação que reproduzem a mesma lógica de dominação que gerou os reflexos contra os quais se luta. Vide o “desenvolvimento sustentável”, por exemplo. Uma infinidade de ativistas ambientais passa a defender que as grandes corporações não tenham tanto descaso pela natureza; entretanto, a principal tática de luta é provar a elas que a produção consciente GERA MAIS LUCRO! (ainda mais em tempos da moda ecológica). Um imenso paradoxo tendo em vista que o capitalismo moderno, em todo seu processo histórico, impôs o totalitarismo do mercado, onde a corrida pelo lucro é a única lei – destrua ou não destrua o meio natural. E, portanto, qualquer ética que desrespeite a avidez individual pelo lucro é punida com a falência – exclusão do jogo econômico/financeiro. Ou seja, argumenta-se pela via que é, e foi durante anos, a verdadeira raiz do aniquilamento natural do planeta e que, provavelmente, continuará a ser. Outro exemplo, a ONG Meninos do Morumbi tem hoje uma infra-estrutura gigantesca, tudo para “amenizar a miséria social”. Modo de operação: buscar talentos artísticos em meio à desgraça das favelas e dar subsídios para que esses seletos meninos vençam na vida! Ou seja, incute-se a lógica da disputa individual, da perseverança como salvação em seres que foram, e são, sua principal vítima. A conclusão é clara: aqueles que não vencem colhem a escassez de seu próprio demérito – nada é culpa do sistema social, embora ele tenha por lógica de funcionamento a exploração do outro, o “vencer”, que, sabemos, sempre envolve o “perder” (Como o Moreira colocou brilhantemente no debate, as pessoas da periferia acreditam-se culpadas pela sua própria situação miserável, e, quando conseguem sair dela, tornam-se os gerentes populares, garotos-propaganda da ideologia de mercado e da construção individual, principal agente da desigualdade que os oprimiu durante séculos).
Levanto esses exemplos, entre tantos outros, para recolocar as questões do começo. No CAC, como em toda USP, existe uma estrutura de poder hierárquico pela qual se sobrescreve toda uma linha de funcionamento (em nosso departamento podemos listar dezenas de fatos e medidas que o comprovam, além da própria práxis regimentar que afirma: conselho não democrático, relação hierarquizada entre as categorias, autoritarismo objetivo e subjetivo, imposição de valores e saberes num espaço que deveria ser de construção, não de recepção, de conhecimento, etc.). Sendo assim, discordo, Cibele, de que não existe uma esfera maior que pré-estabelece conceitos e diretrizes; discordo de que “o CAC somos [apenas] nós”. Concordo, obviamente, no inegável poder e força que tem a nossa atuação enquanto indivíduos na esfera da construção e criação diária no departamento, mas se negarmos essa “esfera maior”, para além do dia-a-dia entre “nós mesmos”, corremos o risco de simplesmente reproduzir a lógica operante, como já dito acima, de atuar e afirmar valores que são, em verdade, as raízes de nossas angústias enquanto pretensos artistas (mas efetivos universitários). Penso ser preciso atuar socialmente em todas as frentes “de batalha”, para tanto, é providencial reconhecer as complexidades formadoras das estruturas e, também, questionar nosso posicionamento diário e individual na sociedade. Entretanto, uma sem a outra reduz a zero qualquer possibilidade de ação efetiva.
Com certeza, a amplitude do debate que proponho a você Cibele (alguém que acredito muita disposta à troca e à divergência construtiva) é muito maior do que nosso jornal de duas folhas. Mas tal debate representa minhas principais inquietações com a arte e o teatro nos dias de hoje, e representa, acredito, nossa atuação enquanto coletivo estudantil no CAC.

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